Peso de
Glória
“...Porque a nossa leve e
momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui
excelente...” (2Co.4:17 ARC)
Se você perguntasse a vinte
homens íntegros dos nossos dias qual acreditam
ser a maior das virtudes, dezenove responderiam: "abnegação".
Mas se perguntasse a qualquer um dos grandes cristãos do passado, diria: "amor". Você percebe o que aconteceu? O
termo positivo foi substituído por um negativo, e a importância desse fato transcende
o campo da filologia. O ideal negativo de abnegação traz consigo, basicamente, a noção não de procurar o
benefício dos outros, mas de prescindirmos nós desse benefício, como se o
importante fosse não a felicidade
alheia, mas a nossa abstenção. Não me parece ser essa a virtude cristã do amor. O Novo Testamento tem muito a declarar
sobre renúncia, mas não da renúncia como um fim em si. Ele diz-nos que devemos
negar a nós mesmos e tomar a nossa cruz para poder seguir a Cristo. E quase
todas as descrições da recompensa que se
seguirá a essa renúncia contêm um apelo ao desejo natural de felicidade. Se
hoje a noção de que é errado desejar a nossa felicidade e esperar ansiosamente gozá-la esconde-se na
maioria das mentes, afirmo que ela surgiu em Kant ou nos estóicos, mas não na
fé cristã. Na realidade, se
considerarmos as promessas pouco modestas de galardão e a espantosa
natureza das recompensas prometidas nos evangelhos, diríamos que nosso Senhor
considera nossos desejos não demasiadamente grandes, mas demasiadamente
pequenos. Somos criaturas divididas, correndo atrás de álcool, sexo e ambições,
desprezando a alegria infinita que se nos
oferece, como uma criança ignorante que prefere continuar fazendo seus
bolinhos de areia numa favela, porque não consegue
imaginar o que significa um convite para passar as férias na praia. Contentamo-nos com muito pouco.
Não precisamos incomodar-nos
com os incrédulos, quando dizem que essa promessa de recompensa transforma a
vida cristã num empreendimento mercenário.
Há vários tipos de recompensa. Existe uma recompensa que não se relaciona com
os esforços que você faz para
alcançá-la e é inteiramente alheia aos desejos que devem acompanhar
esses esforços. O dinheiro não é a recompensa do amor; por isso chamamos de mercenário o homem que casa por interesse. Mas o casamento é a recompensa lógica da pessoa
que ama, e essa pessoa não é mercenária por desejá-lo. O general que se
distingue em combate na esperança de ganhar
um título de nobreza é mercenário; o
que se bate pela vitória não o é, visto que a vitória está para a batalha
como o casamento para o amor. As verdadeiras recompensas não se adicionam simplesmente à atividade que
premiam, são a própria atividade em
consumação. Existe ainda um terceiro caso ainda mais complicado. O prazer da poesia grega é, sem dúvida, uma recompensa natural, não mercenária, do estudo
daquela língua; contudo, só os que
atingiram o estágio de apreciar a poesia grega poderão, por experiência
própria, afirmá-lo. O menino que começa a estudar gramática grega não pode
ansiar pelo deleite, na idade adulta, de Sófocles, da mesma maneira que o
namorado anseia pelo casamento ou o
general, pela vitória. Deve começar a estudar em virtude das notas, ou para escapar do castigo, agradar aos pais, ou,
quando muito, esperando uma vantagem futura que, no momento, é-lhe
impossível imaginar ou mesmo desejar. Portanto, sua posição assemelha-se um pouco à do mercenário: a
recompensa será, na realidade, uma
recompensa natural e devida; mas não saberá disso até obtê-la. Obviamente, adquire-a aos poucos: o
prazer insinua-se, misturando-se ao esforço, e ninguém conseguiria determinar o
dia ou a hora em que este cessou e aquele começou. Mas é quando o estudante vai-se aproximando de sua recompensa
que aprende a desejá-la pelo que ela
representa: com efeito, a faculdade de a desejar é já em si uma
recompensa preliminar.
A posição
do cristão em relação ao céu é muito semelhante. Os que alcançaram a vida eterna e estão na presença de
Deus sabem, sem dúvida, que não foram subornados, mas que se deu a consumação
da sua aprendizagem terrena; nós, no entanto, que ainda não o atingimos, não podemos conhecê-lo da mesma forma, nem sequer
começar a conhecê-lo, a não ser que
continuemos na obediência e encontremos a primeira recompensa de nossa obediência no próprio desejo crescente
de atingir a recompensa mais alta. E, à medida que o nosso desejo se intensifica, vai desaparecendo o receio
de que ele seja puramente mercenário, até reconhecermos que isso é
absurdo. Mas é possível que, para a maioria de nós, isso não aconteça de um dia
para outro: a poesia toma o lugar da
gramática, o evangelho substitui a lei, o desejo transforma a
obediência, de forma tão gradual quanto a maré levanta o barco encalhado na
areia.
Mas existe
ainda outra importante semelhança entre o estudante e o cristão. Se for imaginoso, é bem provável que o
menino já aprecie os poetas e romancistas adequados à sua idade antes mesmo de
supor que a gramática grega vá conduzi-lo a
mais e mais prazeres do mesmo gênero.
Talvez até negligencie o grego para, secretamente, ler Fernando Pessoa ou Carlos Drummond. Em suma, o
desejo que o grego satisfará já
existe nele, estando ligado a objetos que lhe parecem absolutamente dissociados
de Xenofonte e dos verbos em mi (mi). Ora, se fomos
criados para o céu, o desejo de ocuparmos o lugar que nos compete estará já em nós, mas desligado ainda de
seu verdadeiro objeto e
apresentando-se até, por vezes, como rival desse objeto. É precisamente o que verificamos. Mas, sem dúvida,
minha analogia falha num ponto. A
poesia que o rapaz lê quando devia fazer os exercícios de grego pode ser
tão boa como a poesia grega a que o conduzem
os exercícios, de forma que ao concentrar-se em Milton em vez de
preparar-se para ler Esquilo, seu desejo não abraça um objeto falso. Mas nosso
caso é muito diferente. Se o nosso verdadeiro destino é um bem transtemporal e transfinito, então qualquer outro bem em que
se fixe o nosso desejo será enganoso ou, quando muito, terá uma relação simbólica com o bem que verdadeiramente
satisfaz.
Ao falar
desse anelo por essa nossa pátria distante, que encontramos mesmo agora dentro de nós, sinto certa timidez. Estou quase cometendo uma indiscrição. Estou tentando
escancarar o inconsolável segredo de cada um: o segredo que dói tanto
que nos vingamos dele chamando-o de
nostalgia, romantismo e adolescência; o
segredo que nos invade com tanta doçura que, quando numa conversa íntima torna-se iminente a sua alusão,
ficamos embaraçados e fingimos rir de
nós mesmos; o segredo que não podemos ocultar e do qual não podemos
falar, embora desejemos fazer ambas as coisas. Não podemos falar dele por
tratar-se de um desejo por algo que na verdade
nunca surgiu em nossa experiência. Não podemos escondê-lo porque a nossa experiência sugere-o
constantemente, e traímo-nos como os
apaixonados na alusão ao nome do seu amor. O recurso mais comum é chamá-lo beleza e dar o caso como que por
encerrado. Wordsworth adotou o
expediente de identificá-lo com certos momentos do seu passado. Mas tudo
isso é muito falso! Se Wordsworth tivesse voltado
àqueles momentos passados, não teria encontrado a coisa em si, apenas o
lembrete dela; aquilo de que se lembrava seria em si uma lembrança. Os livros
ou a música em que nos parecia morar a beleza vão
trair-nos se neles confiarmos; ela não estava neles, apenas nos vinha por intermédio deles, e o que nos
vinha era uma grande saudade. Tudo isso — a beleza, a memória do nosso
passado — são belas imagens do que
realmente desejamos. Mas quando confundidos com a coisa em si, transformam-se
em ídolos mudos e despedaçam o coração de quem os adora. Porque eles não
são a coisa propriamente dita; são apenas o
aroma de uma flor que não encontramos, o eco de uma melodia que não ouvimos, notícias de um país que nunca visitamos. Você pensa que estou tentando elaborar
uma fórmula mágica? Talvez. Mas
lembre-se dos contos de fadas. A magia tanto serve para encantar como
para quebrar encantamentos. E você e eu precisamos da mais poderosa das magias
que se possa encontrar, para livrar-nos do
encantamento maligno do mundanismo sob o qual vivemos há quase cem anos.
Quase toda a educação procura silenciar essa
voz tímida e persistente dentro de nós: quase todas as filosofias dos nossos tempos foram elaboradas para
convencer-nos de que o bem do homem
encontra-se nesta terra. Contudo, é curioso como certas filosofias de
progresso ou evolução criativa acabem por atestar, relutantemente, que o nosso verdadeiro alvo esteja em outro lugar. Note
a maneira como pretendem convencê-lo de que a terra é seu lar. Começam tentando persuadi-lo de que a terra pode
transformar-se em céu, driblando
assim a nossa sensação de exílio. Depois dizem que esse feliz acontecimento situa-se num futuro
ainda muito distante, driblando assim o nosso conhecimento de que nossa
pátria não está presente, aqui e agora.
Finalmente, para que o nosso anseio por alguma coisa transtemporal não nos acorde, estragando tudo, valem-se da retórica à disposição, para conservar bem
distante da nossa mente o pensamento
de que, ainda que a felicidade que nos prometem pudesse ser uma realidade na terra, cada geração, inclusive a última de todas, a perderia na morte, e toda sua história
seria nada, deixaria até de ser
história, para todo o sempre. Assim, justifica-se todo o absurdo que Shaw põe no discurso final de Lilith,
bem como a teoria de Bergman, afirmando que o élan vital é capaz
de superar todos os obstáculos, talvez até
a morte — como se pudéssemos crer que qualquer
desenvolvimento social ou biológico em nosso planeta pudesse protelar a senilidade do sol ou anular a
segunda lei da termodinâmica.
A despeito de tudo, portanto,
permanecemos conscientes de um desejo que nenhuma felicidade natural é capaz de
satisfazer. Mas haverá alguma razão para supor que a realidade ofereça alguma satisfação para esse desejo? "Nem a fome
prova que existe pão." Penso,
no entanto, que não se trata disso. A fome física de um homem não prova que ele encontrará pão; ele pode morrer
de fome numa jangada em pleno
Atlântico. Mas, com certeza, a fome de um homem prova que ele pertence a uma espécie que restaura o corpo por meio de comida e habita num mundo onde existem substâncias
comestíveis. Da mesma maneira,
embora eu não creia (quem me dera cresse!) que meu anseio pelo paraíso
prove que eu vá usufruir dele, penso ser um sinal bastante seguro de que existe
algo parecido e de que alguns homens vão encontrá-lo. Um homem pode apaixonar-se
por uma mulher sem conquistá-la; mas seria muito estranho se o fenômeno de "ficar apaixonado" ocorresse num mundo
assexuado.
Eis, portanto, o desejo ainda
errante e incerto do seu objeto e ainda incapaz de o procurar na direção em que
ele realmente se encontra. Nossos livros
sagrados dão-nos algum relato desse objeto. Trata-se, evidentemente, de
uma descrição simbólica. O céu está, por definição, inteiramente fora de nossa
experiência, mas toda descrição inteligível
precisa utilizar elementos de nossa experiência. A descrição que as Escrituras dão-nos do céu é, por
conseguinte, tão simbólica como a
que o nosso desejo pode criar por si só: o céu não é de fato coberto de jóias, da mesma forma como não é de
fato a beleza da natureza ou uma boa peça musical. A diferença é que as imagens
bíblicas possuem autoridade. Elas vêm-nos de escritores que viveram mais perto de Deus do que nós e resistiram à
prova da experiência cristã através
dos séculos. O atrativo natural dessas imagens autorizadas é, para mim,
a princípio, muito pequeno. À primeira vista, ele arrefece meu entusiasmo em vez de estimulá-lo. E é isso que eu deveria esperar. Um cristianismo incapaz de
sugerir novos aspectos desse país distante, além dos que minha própria
sensibilidade não me tivesse levado a imaginar, não seria superior a mim. E se
o que tem a oferecer-me é realmente novo,
evidentemente sua atração será, de imediato, muito menor do que a
exercida por minhas próprias idéias. Para o
estudante que só conhece Shelley, Sófocles apresenta-se a princípio monótono e frio. Se nossa religião é
algo objetivo, não devemos desviar os olhos daqueles elementos que
parecem inexplicáveis ou repulsivos, porque
é precisamente atrás do incompreensível e do repulsivo que vamos
encontrar o que não sabemos e precisamos saber.
As promessas das Escrituras
podem, muito por alto, reduzir-se a cinco: em primeiro lugar, promete-se que
estaremos com Cristo; em seguida, que
seremos semelhantes a Ele; depois — e aqui é extraordinária a riqueza de
imagens — que teremos "glória"; em quarto lugar, que seremos
alimentados, festejados ou obsequiados; e, finalmente, que teremos alguma
posição de destaque no universo — governaremos cidades, julgaremos anjos,
seremos colunas no templo de Deus. A
primeira pergunta que me surge é: "Não bastaria a primeira
promessa?". Será possível acrescentar alguma coisa ao conceito de estar com Cristo? Pois deve ser
verdade o que diz um velho escritor:
aquele que tem Deus e tudo o mais, nada possui que não possua aquele que apenas tem Deus. Creio que,
mais uma vez, a solução está na natureza dos símbolos. Ainda que não o
vejamos à primeira vista, qualquer concepção
da maioria de nós sobre o que seria estar com Cristo não é muito menos
simbólica que as outras promessas, pois envolverá idéias de proximidade física,
de conversa íntima, tal como a
compreendemos, e estará, provavelmente, centrada na humanidade de Cristo, excluindo sua deidade. E na realidade verificamos
que os cristãos que só levam em consideração a primeira promessa, sempre a preenchem com imagens bem terrenas — aliás, com
imagens nupciais ou eróticas. Não condeno, de forma alguma, essas imagens. Gostaria até de aprofundar-me mais
nelas e oro para que ainda o
consiga. Mas o que pretendo mostrar é que isso também não é mais que um símbolo: é semelhante à
realidade em alguns aspectos, mas diferente em outros e, portanto, exige
que seja corrigida pelos diferentes
símbolos contidos nas outras promessas. A diversidade de promessas não significa que a nossa mais alta bem-aventurança
encontre-se fora de Deus; mas, pelo fato de Deus ser mais do que uma pessoa e para que não imaginemos a
alegria de sua presença exclusivamente
sob o aspecto de nossa pobre experiência de amor pessoal, com todas as
suas limitações, tensões e monotonias, somos supridos
de uma porção de imagens variadas que se corrigem e se suplementam
mutuamente.
Trato
agora do conceito da glória. Não se pode escapar ao fato de que esse conceito é muito proeminente tanto no Novo
Testamento como nos primeiros escritos do
cristianismo. A salvação aparece constantemente associada a palmas, coroas,
vestes brancas, tronos e esplendor semelhante ao do sol e das estrelas. Nada
disso me impressiona particularmente
e, nesse aspecto, considero-me um indivíduo tipicamente moderno. A glória passa-me duas noções: uma perversa e outra ridícula. A glória, para mim, ou é
celebridade, ou luminosidade. Quanto
à primeira interpretação, uma vez que ser célebre significa ser mais
conhecido do que os outros, o desejo de celebridade parece envolver uma paixão
pela competição e, por conseguinte, mais digno do inferno que do céu. Quanto à
segunda interpretação, quem desejaria
tornar-se uma espécie de lâmpada elétrica viva?
Quando comecei a examinar esse
assunto, fiquei chocado ao descobrir que
cristãos tão diferentes como Milton, Johnson e Tomás de Aquino davam
abertamente à glória celestial o sentido de fama, celebridade ou bom nome. Mas não fama conferida pelas criaturas — era fama perante Deus, aprovação ou (eu diria)
"reconhecimento" da parte de Deus. E, depois de meditar sobre
o problema, cheguei à conclusão de que se
tratava de um ponto de vista bíblico; nada pode eliminar da parábola o divino louvor: "Muito bem, servo bom e
fiel".
E assim tombou, qual castelo de
cartas, uma boa parte das teorias que eu
construíra durante toda a vida. Lembrei, de repente, que ninguém pode entrar no céu senão como menino, e nada há de
mais evidente
numa
criança — não na criança vaidosa, mas na boa criança — do que o grande prazer indisfarçado que ela encontra no
elogio. E não só na criança, mas até nos cães ou nos cavalos. Obviamente,
aquilo que eu confundira com humildade
tinha-me impedido de compreender, durante
todos esses anos, o que é o mais humilde, o mais pueril e o mais humano dos prazeres — ou, antes, o prazer
característico dos seres inferiores: o prazer do animal perante o homem,
da criança perante o pai, do aluno perante o
mestre, da criatura perante o seu Criador.
Não estou esquecendo-me de que forma horrível esse prazer inocente é
parodiado nas nossas ambições humanas ou com que rapidez, em minha própria experiência, o legítimo prazer do louvor daqueles
a quem é nosso dever agradar transforma-se no veneno mortal do orgulho próprio. Mas creio poder detectar um momento — um momento muito, muito breve —, antes que aquilo
acontecesse, em que era ainda pura a
minha satisfação de ter agradado àqueles que eu, com muita razão, amava e respeitava. E isso basta para fazer-nos pensar no que pode acontecer quando a alma
redimida, acima de toda a esperança e quase acima da crença sabe, enfim, que
agradou àquele para cuja alegria foi
criada. Não haverá então lugar para a vaidade. Ela estará livre da miserável ilusão de que os méritos são seus. Sem o mínimo vestígio do que chamamos de auto-elogio,
ela se regozijará inocentemente
naquilo que Deus lhe permitiu ser, e o momento em que desaparecer para sempre o seu velho complexo
de inferioridade sepultará também, para todo o sempre, nas profundezas,
o seu orgulho. A humildade perfeita dispensa a modéstia. Se Deus está
satisfeito com a obra, a obra pode ficar satisfeita consigo mesma: "não compete a ela discutir elogios com o seu
Soberano". Posso imaginar alguém dizendo que não gosta da minha
concepção do céu, que seria um lugar onde nos dão tapinhas nas costas. Mas por
trás dessa rejeição existe uma compreensão falsa, orgulhosa.
Esse Rosto, que é o deleite ou o terror do universo, voltar-se-á um dia para
cada um de nós com uma das duas expressões,
conferindo glória indizível ou infligindo
vergonha que coisa alguma poderá curar ou ocultar. Há dias, li num
periódico que o fundamental é o que pensamos de Deus. Por Deus, isso está errado! O que Deus pensa de nós não é apenas mais
importante, mas infinitamente mais importante! Aliás, o que pensamos dele não
tem a menor importância, a não ser quando o que dele pensamos relaciona-se com o que ele pensa de nós. Está escrito que seremos colocados perante ele, que seremos
apresentados, examinados. A promessa de glória é a promessa quase
incrível, e possível apenas pela obra de
Cristo, de que alguns, alguns que verdadeiramente o quiserem, resistirão
a esse exame, encontrarão aprovação, agradarão a Deus. Agradar a Deus... ser um
verdadeiro integrante da felicidade divina... receber o amor de Deus, não
apenas a sua piedade, mas ser o motivo do prazer, como um artista deleita-se em sua obra ou o pai em seu filho — parece
impossível, é um peso ou carga de
glória que nossa imaginação mal pode suportar. Mas é assim.
Note o que está acontecendo. Se
eu rejeitasse a imagem autorizada e escriturística da glória e me fixasse
obstinadamente naquele desejo vago que, de
início, constituía a única indicação para o céu, não veria nenhuma relação entre aquele desejo e a promessa cristã. Mas agora, depois de ter percorrido o que
me parecia inexplicável e repulsivo
nos livros sagrados, descubro, olhando para trás, com grande surpresa,
que a relação é perfeitamente clara. A glória,
tal como o cristianismo ensina-me a aguardar, satisfaz o meu desejo
original e revela, nesse desejo, um elemento que eu não havia notado. Deixando,
por um momento, de considerar os meus próprios desejos, comecei a conhecer melhor o que eu realmente desejava. Quando há pouco tentava descrever os nossos
anseios espirituais, omiti uma de
suas mais curiosas características. Geralmente, ela faz-se notar no próprio
momento em que a visão fenece, a música termina ou a paisagem perde a iluminação celestial. Keats
descreveu o que sentimos nesse
momento como "a viagem de regresso ao eu habitual". Vocês sabem do que se trata. Durante alguns minutos
tivemos a ilusão de pertencer àquele
mundo. Mas agora acordamos e descobrimos que não é assim. Fomos meros
espectadores. A beleza sorriu, mas não para receber-nos;
o seu rosto voltou-se em nossa direção, mas não para ver-nos. Não fomos aceitos, nem acolhidos, nem
fomos convidados para a festa. Podemos partir, se quisermos; podemos
ficar, se conseguirmos: "ninguém dará
por nós". Um cientista pode replicar que, sendo inanimada a maioria das coisas a que chamamos belas, não é
de admirar que não nos perceba. É verdade. Mas não é dos objetos físicos que falo, mas daquela coisa indescritível
da qual eles momentaneamente se tornam mensageiros. E parte da amargura que se
confunde com a doçura dessa mensagem deve-se ao fato de que raramente essa mensagem parece destinada a nós,
antes, algo que ouvimos por acaso. E,
quando falo de amargura, penso em dor, não em ressentimento.
Dificilmente ousaríamos pedir nos dessem atenção — mas nos lamentamos. A sensação de que somos tratados como estrangeiros neste universo, o desejo de nos
fazer notar, de encontrar alguma resposta, de vencer o abismo que nos
separa da realidade, tudo isso faz parte do
nosso segredo inconsolável. E, com certeza, desse ponto de vista, a promessa de glória, no sentido já descrito,
torna-se altamente relevante para o nosso profundo desejo. Porque glória significa ter bom nome diante de Deus, ser
aceito por ele, ter sua resposta, reconhecimento, ser introduzido no âmago das
coisas. A porta em que batemos toda a vida finalmente se abrirá.
Talvez
pareça um tanto grosseiro definir glória como o fato de ser "notado" por Deus. Mas a linguagem do
Novo Testamento é quase essa. Paulo
promete àqueles que amam a Deus não, como seria de esperar, que
conhecerão a Deus, mas que serão conhecidos por ele (1 Co 8.3). É uma promessa
estranha! Deus não conhece todas as coisas em
todos os tempos? Mas ecoa de forma medonha em outra passagem do Novo Testamento. Nela somos alertados de que
qualquer um de nós pode ter de
comparecer perante Deus para ouvir palavras aterradoras: "Não vos conheço. Apartai-vos de mim!". Num
certo sentido, tão obscuro para o intelecto quanto insuportável para os sentimentos, podemos ser banidos da presença
daquele que é onipresente e apagados
da memória daquele que é onisciente. Podemos ficar totalmente, absolutamente de fora — repelidos, exilados, separados e eterna e indizivelmente ignorados. Por
outro lado, podemos ser convidados,
acolhidos, recebidos, reconhecidos. Andamos todos os dias no fio da
navalha, entre essas duas incríveis possibilidades. Aparentemente, aquela
nostalgia que trazemos sempre conosco, aquele desejo de sermos reatados a alguma
coisa do universo da qual nos sentimos
cortados, de estarmos do lado interno da porta que sempre vimos pelo
lado externo, não são, portanto, mera fantasia neurótica, mas o mais verdadeiro
dos sintomas da nossa real situação. Sermos,
enfim, convidados a entrar seria glória e honra altamente imerecidas e também a
satisfação do nosso velho e doloroso anseio.
E isso leva-me ao outro sentido
de glória — glória como brilho, esplendor,
luminosidade. Brilharemos como o sol, receberemos a estrela da manhã.
Penso que começo a divisar o verdadeiro sentido disso. De certo modo, Deus já
nos deu a estrela da manhã: você pode sair e deleitar-se com esse presente nas
manhãs límpidas, se acordar bem cedo.
Talvez você pergunte: que mais poderíamos desejar? Ah, queremos muito
mais — algo com que pouco se ocupam os livros de estética. Mas os poetas e as mitologias conhecem-no muito bem. Não queremos
a mera contemplação da beleza, embora, Deus o sabe, isso já constitua
grande privilégio. O que queremos dificilmente seria dito em palavras — ser integrados à beleza que vemos,
queremos ser como ela, tê-la em nós, mergulhar nela, fazer parte dela.
Por isso povoamos os ares, a terra e a água de deuses, e ninfas, e gnomos —
para que, embora não possamos nós, possam
essas projeções gozar a beleza, a graça e o poder de que a natureza é
imagem. É por isso que os poetas contam-nos
mentiras tão adoráveis. Falam como se as mais leves brisas pudessem de fato penetrar na alma humana;
mas não podem. Dizem-nos que "a
beleza nascida de um murmúrio" pode tomar a forma de um rosto; mas
não pode. Pelo menos por enquanto. Porque, se
levarmos a sério as imagens das Escrituras, se acreditarmos que Deus nos
dará um dia a estrela da manhã e nos revestirá do esplendor do sol,
então bem podemos suspeitar que os mitos antigos e a poesia moderna, tão falsos
historicamente, podem estar bem próximos da verdade quanto a profecia. No
momento, estamos do lado de fora do mundo, do lado errado da porta. Discernimos
o frescor e a pureza da manhã, mas esse
frescor e essa pureza não nos contagiam. Não nos fundimos com o esplendor que
vemos. Mas todas as páginas do Novo Testamento murmuram um rumor de que não
será sempre assim. Um dia, queira Deus, haveremos de entrar. Quando a
alma humana atingir a perfeição na obediência voluntária, como ocorre na
criação inanimada, revestir-se-á de glória,
uma glória maior da qual a natureza é apenas
o primeiro esboço. E não pense que estou apresentando alguma fantasia
paga de fusão com a natureza. A natureza é mortal; vamos durar mais que ela. Quando todos os sóis e todas
as nebulosas tiverem passado, ainda estaremos vivos. A natureza é apenas
a imagem, o símbolo; mas o símbolo que as
Escrituras me convidam a usar. Somos chamados a passar pela natureza e
seguir para além dela, até aquele esplendor que ela reflete de forma tão
irregular.
Lá, para além da natureza,
comeremos da árvore da vida. No momento, se renascemos em Cristo, o espírito
alimenta-se diretamente de Deus; mas a
mente e sobretudo o corpo são por ele alimentados por inúmeros intermediários —
os antepassados, o alimento, os elementos. Os tênues e longínquos
resultados daquelas energias que a inspiração criadora de Deus comunicou à matéria
quando ele criou os mundos são o que agora
chamamos de prazeres físicos; e mesmo assim
filtrados, são excessivos para nossa administração. O que seria experimentar,
na origem, aquela fonte da qual até seus menores filetes já se mostram inebriantes? Creio, todavia, que é
isso que nos espera. O homem inteiro beberá a alegria da própria fonte
da alegria. Como disse Agostinho, o êxtase
da alma que foi salva transbordará, inundando o corpo glorificado. A
especialização e a depravação dos nossos apetites não nos permitem imaginar o
que será essa torrens voluptatis, e advirto seriamente que ninguém tente
fazê-lo. Mas o fato deve ser mencionado
para expurgar pensamentos ainda mais enganosos — pensamentos de que o
que se salva é mero fantasma ou que o corpo ressuscitado
vive numa insensibilidade estática. O corpo foi criado para o Senhor, e essas fantasias sinistras estão
bem longe do alvo.
Enquanto isso, a cruz precede a
coroa, e a manhã de segunda-feira está aí. Abriu-se uma fenda na impiedosa
muralha que rodeia o mundo, e somos
convidados a seguir, dentro dela, o grande Capitão. Segui-lo é, com
efeito, essencial. Nesse caso, pode-se perguntar qual a utilidade de tanta
especulação. Posso detectar pelo menos uma utilidade.
Cada pessoa pode pensar demais em seu potencial de glória; mas nunca
será possível pensar na glória que também revestirá o seu próximo. O volume, o
peso, o fardo de glória do meu próximo deve pesar sobre mim diariamente, o
fardo tão pesado que só a humildade pode
carregar, e os ossos do orgulho quebrar-se-ão. É muito sério viver numa
sociedade constituída por possíveis deuses e deusas, lembrar que a mais
desinteressante e estúpida das pessoas com quem falamos pode, um dia, vir a ser
alguém que, se a víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos a adorar;
ou (quem sabe?) a personificação do horror
e da corrupção só vistos em pesadelos. Passamos o dia inteiro
ajudando-nos uns aos outros a, de certo modo, encontrar
um desses dois destinos. É à luz dessas possibilidades esmagadoras e com o devido
temor e circunspeção que devemos orientar as nossas relações com os outros;
toda amizade, todo amor, toda recreação, toda política. Não existe gente
comum. Você nunca falou com um simples mortal. As nações, as culturas,
as artes, as civilizações — essas são
mortais, e a vida delas está para a nossa como a vida de um mosquito.
Mas é com criaturas imortais que brincamos,
trabalhamos ou casamos, e a elas que desdenhamos, censuramos ou exploramos — horrores imortais ou
esplendores perenes. Não significa que devamos ser perpetuamente
solenes. Precisamos divertir-nos. Mas nossa
alegria deve ser aquela (aliás, a maior
de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério — sem leviandade, sem superioridade, sem
presunção. E nossa caridade deve ser
um amor autêntico e precioso que se ressinta fortemente do pecado, mas
ame o pecador — não mera tolerância ou indulgência que parodie o amor, como a
leviandade parodia a alegria. Depois da santa ceia, o nosso próximo é o objeto
mais santo que se apresenta aos nossos
sentidos. E se ele for nosso irmão na fé, a santidade que nele existe é
quase idêntica, pois nele também Cristo — o
que glorifica e é glorificado, a própria Glória — está latente.
Mensagem Ministrada no dia 27\02 no Espaço Pentecostal - Sede por
Pr.Dr. Wagner Teruel