quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Peso de Glória




Peso de Glória
“...Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente...” (2Co.4:17 ARC)

Se você perguntasse a vinte homens íntegros dos nossos dias qual acreditam ser a maior das virtudes, dezenove responderiam: "abnegação". Mas se perguntasse a qualquer um dos grandes cristãos do passado, diria: "amor". Você percebe o que aconteceu? O termo positivo foi substituído por um negativo, e a importância desse fato transcende o campo da filologia. O ideal negativo de abnegação traz consigo, basicamente, a noção não de procurar o benefício dos outros, mas de prescindirmos nós desse benefício, como se o importante fosse não a felicidade alheia, mas a nossa abstenção. Não me parece ser essa a virtude cristã do amor. O Novo Testamento tem muito a declarar sobre renúncia, mas não da renúncia como um fim em si. Ele diz-nos que devemos negar a nós mesmos e tomar a nossa cruz para poder seguir a Cristo. E quase todas as descrições da recompensa que se seguirá a essa renúncia contêm um apelo ao desejo natural de felicidade. Se hoje a noção de que é errado desejar a nossa felicidade e esperar ansiosamente gozá-la esconde-se na maioria das mentes, afirmo que ela surgiu em Kant ou nos estóicos, mas não na fé cristã. Na realidade, se considerarmos as promessas pouco modestas de galardão e a espantosa natureza das recompensas prometidas nos evangelhos, diríamos que nosso Senhor considera nossos desejos não demasiadamente grandes, mas demasiadamente pequenos. Somos criaturas divididas, correndo atrás de álcool, sexo e ambições, desprezando a alegria infinita que se nos oferece, como uma criança ignorante que prefere continuar fazendo seus bolinhos de areia numa favela, porque não consegue imaginar o que significa um convite para passar as férias na praia. Contentamo-nos com muito pouco.
Não precisamos incomodar-nos com os incrédulos, quando dizem que essa promessa de recompensa transforma a vida cristã num empreendimento mercenário. Há vários tipos de recompensa. Existe uma recompensa que não se relaciona com os esforços que você faz para alcançá-la e é inteiramente alheia aos desejos que devem acompanhar esses esforços. O dinheiro não é a recompensa do amor; por isso chamamos de mercenário o homem que casa por interesse. Mas o casamento é a recompensa lógica da pessoa que ama, e essa pessoa não é mercenária por desejá-lo. O general que se distingue em combate na esperança de ganhar um título de nobreza é mercenário; o que se bate pela vitória não o é, visto que a vitória está para a batalha como o casamento para o amor. As verdadeiras recompensas não se adicionam simplesmente à atividade que premiam, são a própria atividade em consumação. Existe ainda um terceiro caso ainda mais complicado. O prazer da poesia grega é, sem dúvida, uma recompensa natural, não mercenária, do estudo daquela língua; contudo, só os que atingiram o estágio de apreciar a poesia grega poderão, por experiência própria, afirmá-lo. O menino que começa a estudar gramática grega não pode ansiar pelo deleite, na idade adulta, de Sófocles, da mesma maneira que o namorado anseia pelo casamento ou o general, pela vitória. Deve começar a estudar em virtude das notas, ou para escapar do castigo, agradar aos pais, ou, quando muito, esperando uma vantagem futura que, no momento, é-lhe impossível imaginar ou mesmo desejar. Portanto, sua posição assemelha-se um pouco à do mercenário: a recompensa será, na realidade, uma recompensa natural e devida; mas não saberá disso até obtê-la. Obviamente, adquire-a aos poucos: o prazer insinua-se, misturando-se ao esforço, e ninguém conseguiria determinar o dia ou a hora em que este cessou e aquele começou. Mas é quando o estudante vai-se aproximando de sua recompensa que aprende a desejá-la pelo que ela representa: com efeito, a faculdade de a desejar é já em si uma recompensa preliminar.
A posição do cristão em relação ao céu é muito semelhante. Os que alcançaram a vida eterna e estão na presença de Deus sabem, sem dúvida, que não foram subornados, mas que se deu a consumação da sua aprendizagem terrena; nós, no entanto, que ainda não o atingimos, não podemos conhecê-lo da mesma forma, nem sequer começar a conhecê-lo, a não ser que continuemos na obediência e encontremos a primeira recompensa de nossa obediência no próprio desejo crescente de atingir a recompensa mais alta. E, à medida que o nosso desejo se intensifica, vai desaparecendo o receio de que ele seja puramente mercenário, até reconhecermos que isso é absurdo. Mas é possível que, para a maioria de nós, isso não aconteça de um dia para outro: a poesia toma o lugar da gramática, o evangelho substitui a lei, o desejo transforma a obediência, de forma tão gradual quanto a maré levanta o barco encalhado na areia.
Mas existe ainda outra importante semelhança entre o estudante e o cristão. Se for imaginoso, é bem provável que o menino já aprecie os poetas e romancistas adequados à sua idade antes mesmo de supor que a gramática grega vá conduzi-lo a mais e mais prazeres do mesmo gênero. Talvez até negligencie o grego para, secretamente, ler Fernando Pessoa ou Carlos Drummond. Em suma, o desejo que o grego satisfará já existe nele, estando ligado a objetos que lhe parecem absolutamente dissociados de Xenofonte e dos verbos em mi (mi). Ora, se fomos criados para o céu, o desejo de ocuparmos o lugar que nos compete estará já em nós, mas desligado ainda de seu verdadeiro objeto e apresentando-se até, por vezes, como rival desse objeto. É precisamente o que verificamos. Mas, sem dúvida, minha analogia falha num ponto. A poesia que o rapaz lê quando devia fazer os exercícios de grego pode ser tão boa como a poesia grega a que o conduzem os exercícios, de forma que ao concentrar-se em Milton em vez de preparar-se para ler Esquilo, seu desejo não abraça um objeto falso. Mas nosso caso é muito diferente. Se o nosso verdadeiro destino é um bem transtemporal e transfinito, então qualquer outro bem em que se fixe o nosso desejo será enganoso ou, quando muito, terá uma relação simbólica com o bem que verdadeiramente satisfaz.
Ao falar desse anelo por essa nossa pátria distante, que encontramos mesmo agora dentro de nós, sinto certa timidez. Estou quase cometendo uma indiscrição. Estou tentando escancarar o inconsolável segredo de cada um: o segredo que dói tanto que nos vingamos dele chamando-o de nostalgia, romantismo e adolescência; o segredo que nos invade com tanta doçura que, quando numa conversa íntima torna-se iminente a sua alusão, ficamos embaraçados e fingimos rir de nós mesmos; o segredo que não podemos ocultar e do qual não podemos falar, embora desejemos fazer ambas as coisas. Não podemos falar dele por tratar-se de um desejo por algo que na verdade nunca surgiu em nossa experiência. Não podemos escondê-lo porque a nossa experiência sugere-o constantemente, e traímo-nos como os apaixonados na alusão ao nome do seu amor. O recurso mais comum é chamá-lo beleza e dar o caso como que por encerrado. Wordsworth adotou o expediente de identificá-lo com certos momentos do seu passado. Mas tudo isso é muito falso! Se Wordsworth tivesse voltado àqueles momentos passados, não teria encontrado a coisa em si, apenas o lembrete dela; aquilo de que se lembrava seria em si uma lembrança. Os livros ou a música em que nos parecia morar a beleza vão trair-nos se neles confiarmos; ela não estava neles, apenas nos vinha por intermédio deles, e o que nos vinha era uma grande saudade. Tudo isso — a beleza, a memória do nosso passado — são belas imagens do que realmente desejamos. Mas quando confundidos com a coisa em si, transformam-se em ídolos mudos e despedaçam o coração de quem os adora. Porque eles não são a coisa propriamente dita; são apenas o aroma de uma flor que não encontramos, o eco de uma melodia que não ouvimos, notícias de um país que nunca visitamos. Você pensa que estou tentando elaborar uma fórmula mágica? Talvez. Mas lembre-se dos contos de fadas. A magia tanto serve para encantar como para quebrar encantamentos. E você e eu precisamos da mais poderosa das magias que se possa encontrar, para livrar-nos do encantamento maligno do mundanismo sob o qual vivemos há quase cem anos. Quase toda a educação procura silenciar essa voz tímida e persistente dentro de nós: quase todas as filosofias dos nossos tempos foram elaboradas para convencer-nos de que o bem do homem encontra-se nesta terra. Contudo, é curioso como certas filosofias de progresso ou evolução criativa acabem por atestar, relutantemente, que o nosso verdadeiro alvo esteja em outro lugar. Note a maneira como pretendem convencê-lo de que a terra é seu lar. Começam tentando persuadi-lo de que a terra pode transformar-se em céu, driblando assim a nossa sensação de exílio. Depois dizem que esse feliz acontecimento situa-se num futuro ainda muito distante, driblando assim o nosso conhecimento de que nossa pátria não está presente, aqui e agora. Finalmente, para que o nosso anseio por alguma coisa transtemporal não nos acorde, estragando tudo, valem-se da retórica à disposição, para conservar bem distante da nossa mente o pensamento de que, ainda que a felicidade que nos prometem pudesse ser uma realidade na terra, cada geração, inclusive a última de todas, a perderia na morte, e toda sua história seria nada, deixaria até de ser história, para todo o sempre. Assim, justifica-se todo o absurdo que Shaw põe no discurso final de Lilith, bem como a teoria de Bergman, afirmando que o élan vital é capaz de superar todos os obstáculos, talvez até a morte — como se pudéssemos crer que qualquer desenvolvimento social ou biológico em nosso planeta pudesse protelar a senilidade do sol ou anular a segunda lei da termodinâmica.
A despeito de tudo, portanto, permanecemos conscientes de um desejo que nenhuma felicidade natural é capaz de satisfazer. Mas haverá alguma razão para supor que a realidade ofereça alguma satisfação para esse desejo? "Nem a fome prova que existe pão." Penso, no entanto, que não se trata disso. A fome física de um homem não prova que ele encontrará pão; ele pode morrer de fome numa jangada em pleno Atlântico. Mas, com certeza, a fome de um homem prova que ele pertence a uma espécie que restaura o corpo por meio de comida e habita num mundo onde existem substâncias comestíveis. Da mesma maneira, embora eu não creia (quem me dera cresse!) que meu anseio pelo paraíso prove que eu vá usufruir dele, penso ser um sinal bastante seguro de que existe algo parecido e de que alguns homens vão encontrá-lo. Um homem pode apaixonar-se por uma mulher sem conquistá-la; mas seria muito estranho se o fenômeno de "ficar apaixonado" ocorresse num mundo assexuado.
Eis, portanto, o desejo ainda errante e incerto do seu objeto e ainda incapaz de o procurar na direção em que ele realmente se encontra. Nossos livros sagrados dão-nos algum relato desse objeto. Trata-se, evidentemente, de uma descrição simbólica. O céu está, por definição, inteiramente fora de nossa experiência, mas toda descrição inteligível precisa utilizar elementos de nossa experiência. A descrição que as Escrituras dão-nos do céu é, por conseguinte, tão simbólica como a que o nosso desejo pode criar por si só: o céu não é de fato coberto de jóias, da mesma forma como não é de fato a beleza da natureza ou uma boa peça musical. A diferença é que as imagens bíblicas possuem autoridade. Elas vêm-nos de escritores que viveram mais perto de Deus do que nós e resistiram à prova da experiência cristã através dos séculos. O atrativo natural dessas imagens autorizadas é, para mim, a princípio, muito pequeno. À primeira vista, ele arrefece meu entusiasmo em vez de estimulá-lo. E é isso que eu deveria esperar. Um cristianismo incapaz de sugerir novos aspectos desse país distante, além dos que minha própria sensibilidade não me tivesse levado a imaginar, não seria superior a mim. E se o que tem a oferecer-me é realmente novo, evidentemente sua atração será, de imediato, muito menor do que a exercida por minhas próprias idéias. Para o estudante que só conhece Shelley, Sófocles apresenta-se a princípio monótono e frio. Se nossa religião é algo objetivo, não devemos desviar os olhos daqueles elementos que parecem inexplicáveis ou repulsivos, porque é precisamente atrás do incompreensível e do repulsivo que vamos encontrar o que não sabemos e precisamos saber.
As promessas das Escrituras podem, muito por alto, reduzir-se a cinco: em primeiro lugar, promete-se que estaremos com Cristo; em seguida, que seremos semelhantes a Ele; depois — e aqui é extraordinária a riqueza de imagens — que teremos "glória"; em quarto lugar, que seremos alimentados, festejados ou obsequiados; e, finalmente, que teremos alguma posição de destaque no universo — governaremos cidades, julgaremos anjos, seremos colunas no templo de Deus. A primeira pergunta que me surge é: "Não bastaria a primeira promessa?". Será possível acrescentar alguma coisa ao conceito de estar com Cristo? Pois deve ser verdade o que diz um velho escritor: aquele que tem Deus e tudo o mais, nada possui que não possua aquele que apenas tem Deus. Creio que, mais uma vez, a solução está na natureza dos símbolos. Ainda que não o vejamos à primeira vista, qualquer concepção da maioria de nós sobre o que seria estar com Cristo não é muito menos simbólica que as outras promessas, pois envolverá idéias de proximidade física, de conversa íntima, tal como a compreendemos, e estará, provavelmente, centrada na humanidade de Cristo, excluindo sua deidade. E na realidade verificamos que os cristãos que só levam em consideração a primeira promessa, sempre a preenchem com imagens bem terrenas — aliás, com imagens nupciais ou eróticas. Não condeno, de forma alguma, essas imagens. Gostaria até de aprofundar-me mais nelas e oro para que ainda o consiga. Mas o que pretendo mostrar é que isso também não é mais que um símbolo: é semelhante à realidade em alguns aspectos, mas diferente em outros e, portanto, exige que seja corrigida pelos diferentes símbolos contidos nas outras promessas. A diversidade de promessas não significa que a nossa mais alta bem-aventurança encontre-se fora de Deus; mas, pelo fato de Deus ser mais do que uma pessoa e para que não imaginemos a alegria de sua presença exclusivamente sob o aspecto de nossa pobre experiência de amor pessoal, com todas as suas limitações, tensões e monotonias, somos supridos de uma porção de imagens variadas que se corrigem e se suplementam mutuamente.
Trato agora do conceito da glória. Não se pode escapar ao fato de que esse conceito é muito proeminente tanto no Novo Testamento como nos primeiros escritos do cristianismo. A salvação aparece constantemente associada a palmas, coroas, vestes brancas, tronos e esplendor semelhante ao do sol e das estrelas. Nada disso me impressiona particularmente e, nesse aspecto, considero-me um indivíduo tipicamente moderno. A glória passa-me duas noções: uma perversa e outra ridícula. A glória, para mim, ou é celebridade, ou luminosidade. Quanto à primeira interpretação, uma vez que ser célebre significa ser mais conhecido do que os outros, o desejo de celebridade parece envolver uma paixão pela competição e, por conseguinte, mais digno do inferno que do céu. Quanto à segunda interpretação, quem desejaria tornar-se uma espécie de lâmpada elétrica viva?
Quando comecei a examinar esse assunto, fiquei chocado ao descobrir que cristãos tão diferentes como Milton, Johnson e Tomás de Aquino davam abertamente à glória celestial o sentido de fama, celebridade ou bom nome. Mas não fama conferida pelas criaturas — era fama perante Deus, aprovação ou (eu diria) "reconhecimento" da parte de Deus. E, depois de meditar sobre o problema, cheguei à conclusão de que se tratava de um ponto de vista bíblico; nada pode eliminar da parábola o divino louvor: "Muito bem, servo bom e fiel".
E assim tombou, qual castelo de cartas, uma boa parte das teorias que eu construíra durante toda a vida. Lembrei, de repente, que ninguém pode entrar no céu senão como menino, e nada há de mais evidente
numa criança — não na criança vaidosa, mas na boa criança — do que o grande prazer indisfarçado que ela encontra no elogio. E não só na criança, mas até nos cães ou nos cavalos. Obviamente, aquilo que eu confundira com humildade tinha-me impedido de compreender, durante todos esses anos, o que é o mais humilde, o mais pueril e o mais humano dos prazeres — ou, antes, o prazer característico dos seres inferiores: o prazer do animal perante o homem, da criança perante o pai, do aluno perante o mestre, da criatura perante o seu Criador. Não estou esquecendo-me de que forma horrível esse prazer inocente é parodiado nas nossas ambições humanas ou com que rapidez, em minha própria experiência, o legítimo prazer do louvor daqueles a quem é nosso dever agradar transforma-se no veneno mortal do orgulho próprio. Mas creio poder detectar um momento — um momento muito, muito breve —, antes que aquilo acontecesse, em que era ainda pura a minha satisfação de ter agradado àqueles que eu, com muita razão, amava e respeitava. E isso basta para fazer-nos pensar no que pode acontecer quando a alma redimida, acima de toda a esperança e quase acima da crença sabe, enfim, que agradou àquele para cuja alegria foi criada. Não haverá então lugar para a vaidade. Ela estará livre da miserável ilusão de que os méritos são seus. Sem o mínimo vestígio do que chamamos de auto-elogio, ela se regozijará inocentemente naquilo que Deus lhe permitiu ser, e o momento em que desaparecer para sempre o seu velho complexo de inferioridade sepultará também, para todo o sempre, nas profundezas, o seu orgulho. A humildade perfeita dispensa a modéstia. Se Deus está satisfeito com a obra, a obra pode ficar satisfeita consigo mesma: "não compete a ela discutir elogios com o seu Soberano". Posso imaginar alguém dizendo que não gosta da minha concepção do céu, que seria um lugar onde nos dão tapinhas nas costas. Mas por trás dessa rejeição existe uma compreensão falsa, orgulhosa. Esse Rosto, que é o deleite ou o terror do universo, voltar-se-á um dia para cada um de nós com uma das duas expressões, conferindo glória indizível ou infligindo vergonha que coisa alguma poderá curar ou ocultar. Há dias, li num periódico que o fundamental é o que pensamos de Deus. Por Deus, isso está errado! O que Deus pensa de nós não é apenas mais importante, mas infinitamente mais importante! Aliás, o que pensamos dele não tem a menor importância, a não ser quando o que dele pensamos relaciona-se com o que ele pensa de nós. Está escrito que seremos colocados perante ele, que seremos apresentados, examinados. A promessa de glória é a promessa quase incrível, e possível apenas pela obra de Cristo, de que alguns, alguns que verdadeiramente o quiserem, resistirão a esse exame, encontrarão aprovação, agradarão a Deus. Agradar a Deus... ser um verdadeiro integrante da felicidade divina... receber o amor de Deus, não apenas a sua piedade, mas ser o motivo do prazer, como um artista deleita-se em sua obra ou o pai em seu filho — parece impossível, é um peso ou carga de glória que nossa imaginação mal pode suportar. Mas é assim.
Note o que está acontecendo. Se eu rejeitasse a imagem autorizada e escriturística da glória e me fixasse obstinadamente naquele desejo vago que, de início, constituía a única indicação para o céu, não veria nenhuma relação entre aquele desejo e a promessa cristã. Mas agora, depois de ter percorrido o que me parecia inexplicável e repulsivo nos livros sagrados, descubro, olhando para trás, com grande surpresa, que a relação é perfeitamente clara. A glória, tal como o cristianismo ensina-me a aguardar, satisfaz o meu desejo original e revela, nesse desejo, um elemento que eu não havia notado. Deixando, por um momento, de considerar os meus próprios desejos, comecei a conhecer melhor o que eu realmente desejava. Quando há pouco tentava descrever os nossos anseios espirituais, omiti uma de suas mais curiosas características. Geralmente, ela faz-se notar no próprio momento em que a visão fenece, a música termina ou a paisagem perde a iluminação celestial. Keats descreveu o que sentimos nesse momento como "a viagem de regresso ao eu habitual". Vocês sabem do que se trata. Durante alguns minutos tivemos a ilusão de pertencer àquele mundo. Mas agora acordamos e descobrimos que não é assim. Fomos meros espectadores. A beleza sorriu, mas não para receber-nos; o seu rosto voltou-se em nossa direção, mas não para ver-nos. Não fomos aceitos, nem acolhidos, nem fomos convidados para a festa. Podemos partir, se quisermos; podemos ficar, se conseguirmos: "ninguém dará por nós". Um cientista pode replicar que, sendo inanimada a maioria das coisas a que chamamos belas, não é de admirar que não nos perceba. É verdade. Mas não é dos objetos físicos que falo, mas daquela coisa indescritível da qual eles momentaneamente se tornam mensageiros. E parte da amargura que se confunde com a doçura dessa mensagem deve-se ao fato de que raramente essa mensagem parece destinada a nós, antes, algo que ouvimos por acaso. E, quando falo de amargura, penso em dor, não em ressentimento. Dificilmente ousaríamos pedir nos dessem atenção — mas nos lamentamos. A sensação de que somos tratados como estrangeiros neste universo, o desejo de nos fazer notar, de encontrar alguma resposta, de vencer o abismo que nos separa da realidade, tudo isso faz parte do nosso segredo inconsolável. E, com certeza, desse ponto de vista, a promessa de glória, no sentido já descrito, torna-se altamente relevante para o nosso profundo desejo. Porque glória significa ter bom nome diante de Deus, ser aceito por ele, ter sua resposta, reconhecimento, ser introduzido no âmago das coisas. A porta em que batemos toda a vida finalmente se abrirá.
Talvez pareça um tanto grosseiro definir glória como o fato de ser "notado" por Deus. Mas a linguagem do Novo Testamento é quase essa. Paulo promete àqueles que amam a Deus não, como seria de esperar, que conhecerão a Deus, mas que serão conhecidos por ele (1 Co 8.3). É uma promessa estranha! Deus não conhece todas as coisas em todos os tempos? Mas ecoa de forma medonha em outra passagem do Novo Testamento. Nela somos alertados de que qualquer um de nós pode ter de comparecer perante Deus para ouvir palavras aterradoras: "Não vos conheço. Apartai-vos de mim!". Num certo sentido, tão obscuro para o intelecto quanto insuportável para os sentimentos, podemos ser banidos da presença daquele que é onipresente e apagados da memória daquele que é onisciente. Podemos ficar totalmente, absolutamente de fora — repelidos, exilados, separados e eterna e indizivelmente ignorados. Por outro lado, podemos ser convidados, acolhidos, recebidos, reconhecidos. Andamos todos os dias no fio da navalha, entre essas duas incríveis possibilidades. Aparentemente, aquela nostalgia que trazemos sempre conosco, aquele desejo de sermos reatados a alguma coisa do universo da qual nos sentimos cortados, de estarmos do lado interno da porta que sempre vimos pelo lado externo, não são, portanto, mera fantasia neurótica, mas o mais verdadeiro dos sintomas da nossa real situação. Sermos, enfim, convidados a entrar seria glória e honra altamente imerecidas e também a satisfação do nosso velho e doloroso anseio.
E isso leva-me ao outro sentido de glória — glória como brilho, esplendor, luminosidade. Brilharemos como o sol, receberemos a estrela da manhã. Penso que começo a divisar o verdadeiro sentido disso. De certo modo, Deus já nos deu a estrela da manhã: você pode sair e deleitar-se com esse presente nas manhãs límpidas, se acordar bem cedo. Talvez você pergunte: que mais poderíamos desejar? Ah, queremos muito mais — algo com que pouco se ocupam os livros de estética. Mas os poetas e as mitologias conhecem-no muito bem. Não queremos a mera contemplação da beleza, embora, Deus o sabe, isso já constitua grande privilégio. O que queremos dificilmente seria dito em palavras — ser integrados à beleza que vemos, queremos ser como ela, tê-la em nós, mergulhar nela, fazer parte dela. Por isso povoamos os ares, a terra e a água de deuses, e ninfas, e gnomos — para que, embora não possamos nós, possam essas projeções gozar a beleza, a graça e o poder de que a natureza é imagem. É por isso que os poetas contam-nos mentiras tão adoráveis. Falam como se as mais leves brisas pudessem de fato penetrar na alma humana; mas não podem. Dizem-nos que "a beleza nascida de um murmúrio" pode tomar a forma de um rosto; mas não pode. Pelo menos por enquanto. Porque, se levarmos a sério as imagens das Escrituras, se acreditarmos que Deus nos dará um dia a estrela da manhã e nos revestirá do esplendor do sol, então bem podemos suspeitar que os mitos antigos e a poesia moderna, tão falsos historicamente, podem estar bem próximos da verdade quanto a profecia. No momento, estamos do lado de fora do mundo, do lado errado da porta. Discernimos o frescor e a pureza da manhã, mas esse frescor e essa pureza não nos contagiam. Não nos fundimos com o esplendor que vemos. Mas todas as páginas do Novo Testamento murmuram um rumor de que não será sempre assim. Um dia, queira Deus, haveremos de entrar. Quando a alma humana atingir a perfeição na obediência voluntária, como ocorre na criação inanimada, revestir-se-á de glória, uma glória maior da qual a natureza é apenas o primeiro esboço. E não pense que estou apresentando alguma fantasia paga de fusão com a natureza. A natureza é mortal; vamos durar mais que ela. Quando todos os sóis e todas as nebulosas tiverem passado, ainda estaremos vivos. A natureza é apenas a imagem, o símbolo; mas o símbolo que as Escrituras me convidam a usar. Somos chamados a passar pela natureza e seguir para além dela, até aquele esplendor que ela reflete de forma tão irregular.
Lá, para além da natureza, comeremos da árvore da vida. No momento, se renascemos em Cristo, o espírito alimenta-se diretamente de Deus; mas a mente e sobretudo o corpo são por ele alimentados por inúmeros intermediários — os antepassados, o alimento, os elementos. Os tênues e longínquos resultados daquelas energias que a inspiração criadora de Deus comunicou à matéria quando ele criou os mundos são o que agora chamamos de prazeres físicos; e mesmo assim filtrados, são excessivos para nossa administração. O que seria experimentar, na origem, aquela fonte da qual até seus menores filetes já se mostram inebriantes? Creio, todavia, que é isso que nos espera. O homem inteiro beberá a alegria da própria fonte da alegria. Como disse Agostinho, o êxtase da alma que foi salva transbordará, inundando o corpo glorificado. A especialização e a depravação dos nossos apetites não nos permitem imaginar o que será essa torrens voluptatis, e advirto seriamente que ninguém tente fazê-lo. Mas o fato deve ser mencionado para expurgar pensamentos ainda mais enganosos — pensamentos de que o que se salva é mero fantasma ou que o corpo ressuscitado vive numa insensibilidade estática. O corpo foi criado para o Senhor, e essas fantasias sinistras estão bem longe do alvo.
Enquanto isso, a cruz precede a coroa, e a manhã de segunda-feira está aí. Abriu-se uma fenda na impiedosa muralha que rodeia o mundo, e somos convidados a seguir, dentro dela, o grande Capitão. Segui-lo é, com efeito, essencial. Nesse caso, pode-se perguntar qual a utilidade de tanta especulação. Posso detectar pelo menos uma utilidade. Cada pessoa pode pensar demais em seu potencial de glória; mas nunca será possível pensar na glória que também revestirá o seu próximo. O volume, o peso, o fardo de glória do meu próximo deve pesar sobre mim diariamente, o fardo tão pesado que só a humildade pode carregar, e os ossos do orgulho quebrar-se-ão. É muito sério viver numa sociedade constituída por possíveis deuses e deusas, lembrar que a mais desinteressante e estúpida das pessoas com quem falamos pode, um dia, vir a ser alguém que, se a víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos a adorar; ou (quem sabe?) a personificação do horror e da corrupção só vistos em pesadelos. Passamos o dia inteiro ajudando-nos uns aos outros a, de certo modo, encontrar um desses dois destinos. É à luz dessas possibilidades esmagadoras e com o devido temor e circunspeção que devemos orientar as nossas relações com os outros; toda amizade, todo amor, toda recreação, toda política. Não existe gente comum. Você nunca falou com um simples mortal. As nações, as culturas, as artes, as civilizações — essas são mortais, e a vida delas está para a nossa como a vida de um mosquito. Mas é com criaturas imortais que brincamos, trabalhamos ou casamos, e a elas que desdenhamos, censuramos ou exploramos — horrores imortais ou esplendores perenes. Não significa que devamos ser perpetuamente solenes. Precisamos divertir-nos. Mas nossa alegria deve ser aquela (aliás, a maior de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério — sem leviandade, sem superioridade, sem presunção. E nossa caridade deve ser um amor autêntico e precioso que se ressinta fortemente do pecado, mas ame o pecador — não mera tolerância ou indulgência que parodie o amor, como a leviandade parodia a alegria. Depois da santa ceia, o nosso próximo é o objeto mais santo que se apresenta aos nossos sentidos. E se ele for nosso irmão na fé, a santidade que nele existe é quase idêntica, pois nele também Cristo — o que glorifica e é glorificado, a própria Glória — está latente.


Mensagem Ministrada no dia 27\02 no Espaço Pentecostal - Sede por
Pr.Dr. Wagner Teruel

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Professor, por favor cite a fonte.
Texto extraído do livro "O peso de glória" do autor C.S.Lewis, da Editora Vida.